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Os Sem-Natal
O abandono de crianças e idosos em asilos
Olhava fixamente aquele retrato amarelado e desgastado pelas intempéries do tempo. Tentava imaginar como seria o rosto dele, após tantos anos. Será se ele tem o garbo do pai? Será se ele tem os olhos da avó? Não sei, nem nunca saberei. Absorta em meus pensamentos, encarava o nada, e ali me mantive em lágrimas e esperanças perdidas.
Descobri, há vinte anos, que era
portadora de esclerose múltipla. As palavras soavam inaudíveis de meus lábios,
tentando, em vão, expressar o impacto daquela notícia. Como a natureza poderia
ser tão cruel? Por que eu? Será se não mereço ter uma vida plena, nem que seja
um pouco mais? Padeci diante das lembranças de todo o tempo perdido e das
chances abandonadas, ou pelo simples medo de errar ou pelo cômodo da imparcialidade
diante das escolhas.
Agora, aqui estou. Sentada nesta
cadeira de rodas, dependendo de tudo e de todos para as mais elementares
atividades cotidianas. O galope de minha doença transparece no crescente peso
que despenca sobre meus músculos. Por que eles não respondem aos comandos do
seu mestre? Apenas sorriem diante do fracasso de minhas tentativas.
Dependo da boa vontade de pessoas
que sequer sei o sobrenome. Estou à mercê de atos mecânicos e profissionais de
médicos e enfermeiras, movidos apenas pelo dever do labor. Colocam-me em um
canto, dopam-me de morfina e antibióticos, e ali fico o dia inteiro, e todos os
dias da semana, e todos os dias do mês, e todos os meses de um século.
O Natal está próximo, querido
leitor. Sinto o perfume do estardalhaço de fim de ano. O frenesi das pessoas,
os calorosos abraços e os sorrisos fáceis. Tudo gravita em torno de um caloroso
ar de boas-vindas a uma nova vida. A biografia deles, porém, será tão
previsível quanto a minha. Falsas promessas e doces ilusões. Excêntricos, não?
Como vim parar aqui? Bem, foi
este garotinho de olhos cinzentos e dentes retangulares, que repousa sorridente
neste papel, que me trouxe até aqui. Disse que logo voltaria, que apenas compraria
meus medicamentos na farmácia que ficava ali próximo, do outro lado da rua.
Tenho pena dele: ainda hoje percorre o longínquo logradouro, de largura
infinita.
Lembro-me que me chamava de mãe,
e que seu abraço era quente como o primeiro sopro de verão. Sinto sua falta. Será
se ele ainda lembra que tenho de tomar os meus comprimidos às seis? Deveria
ligar para apressá-lo. Ocorreu-me agora da teimosia de minhas pernas. Pfff,
deixemos para lá. Sei que em breve ele transpassará os limites deste papel, e
trará de volta aqueles ventos de verão.
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