12:21
-
amor
,
decisão
,
destino
,
dia dos pais
,
narração
,
reflexão
Sem comentários


Você quer ser meu pai?

Abandono de crianças em orfanatos no Brasil
HELENA fincava fortemente as unhas em minhas costas. Suas lágrimas inundavam meu paletó. Reunia, em minhas vísceras, o impossível, para não sucumbir àquele momento. Era o terceiro filho que perdíamos, somente naquele ano.
- Eu sou uma oca, Vinícius! Completamente
vazia por dentro! – agitava a cabeça, desordenadamente, atrapalhando-se entre
lágrimas e palavras.
- Amor... – suspirei fundo. – Acalme-se. A
culpa não é sua. – pus meu indicador em seu queixo e, erguendo seus olhos,
enxuguei-lhe as lágrimas e beijei-lhe a testa. – O aborto espontâneo, como a
própria nomenclatura sugere, independe completamente de sua vontade. – entoava
minha voz, de modo a soar a mais acolhedora possível. – Simplesmente acontece.
– conclui, abraçando-a com maior afinco. Olhei para o nada, por sobre seu
ombro, e perdi-me em pensamentos, perguntando-me até que ponto suportaria aquilo
tudo.
Opondo-me grande resistência, propus-me a adotar uma criança.
- Você faria isso por mim, ou melhor, por nós,
amor? – o reflexo da luz, em suas lágrimas, potencializou-se, em um brilho
instantâneo. – M-m-mas você sempre teve receio de adotar um filho... –
escureceu o semblante, não disfarçando seu desapontamento.
- É, amor... – encarava o lustre, em olhar
vago. – Mas, por você, eu faço tudo. Absolutamente tudo para te ver feliz. –
beijei-lhe os lábios e esbocei um leve sorriso incolor.
Vinícius, apesar de primogênito –
posição de honraria, na família brasileira, da década de 70 –, era,
nitidamente, desvalorizado, em prol de sua irmã caçula. Sua mãe não se acanhava
em dedicar maiores mimos e extravagâncias à pequenina, a tão desejada filha mulher,
adotada, Vinícius fazia questão de ressaltar. Seu pai, práxis à época, mantinha-se,
como bom patriarca, em um pedestal, equidistante de mulher e filhos. Restava-lhe,
apenas, as carícias impessoais de seus brinquedos, portanto.
A caçula, para transtorno de sua
mãe e malicioso êxtase de Vinícius, aos 18 anos incompletos, ausentou-se de
casa, às escondidas, para nunca mais retornar. As suposições, confirmadas por
mexericos de vizinhança, convergiam em uma fuga passional: fugira com uma
paixonite, um famoso traficante de drogas. De posse destas informações, espero
seja mais compreensivo com nosso pupilo, leitor. Vinícius jamais aceitara o
fato de ser substituído por uma bastardazinha qualquer, como ele próprio a
denominava. Esclarecidos os fatos, devolvemos a palavra ao nosso protagonista.
Naquela fria e cinzenta tarde de
outono, pus-se, apesar da gélida garoa, em direção a um orfanato, não tão
distante, em bairro vizinho.
A assistente social falava-me
algo sobre problemas estruturais e econômicos, consequentes, principalmente, do
descaso governamental e das escassas doações voluntárias: informações estas que
apenas cruzavam, em um longe ruído, meus tímpanos. O bater de porta despertou-me
do transe.
- Aqui é o berçário. – mostrou-me, em um
simpático sorriso. – Estes daqui têm sorte – apontava para uns bebês roliços e
loiros. – Mal nascem e já têm uma família à espera. – Os negros, quase sempre,
não desfrutam de tal celeridade – ressaltou, em um baixar de olhos e enfraquecer
de voz.
Algumas portas adiante, adentramos
o quarto dos meninos – deveria ser homem, ressaltei – de faixa etária entre
dois e seis anos. Todos, à exceção de Pedro, dormiam, silenciosamente,
disfarçando, em gordos ressonos, a personalidade traquina. Pedro, até então
entretido, dirigiu sua atenção àquela silhueta desconhecida e, em ataque de fúria,
saltou em minhas pernas, esbofeteando-me freneticamente.
Mil desculpas e algumas inúmeras
indagações sobre minha integridade física e bem-estar acompanharam Vinícius até a
porta.
- Não culpe o pobrezinho, sr. Vinícius... – olhava-me
com piedade.
Diante do fato desconcertante, a
assistente social viu-se sem saída e, após um longo suspiro, revelou:
- Pedro, em inocentes dois anos de idade,
assistiu ao homicídio de sua mãe, a facadas, autoria de seu próprio pai, em uma
de suas crises de embriaguez.
Fez-se um incômodo silêncio. Virei-me
e sai , absorto.
Após aquele dia, sem saber ao
certo por qual motivo, passei a visitar Pedro reiteradamente. As crises de ódio,
aos poucos, cedeream a uma personalidade afável, típica da doçura da idade. Por
vezes, adormecia com Pedro, imersos em fantásticas estórias infantis.
Incontáveis foram os danos materiais, durante as partidas de futebol,
provocados pelos impactos das bolas. Nossas gargalhadas preenchiam as paredes
do orfanato, de modo que o silêncio era visitante raro e fugaz. Os dias, antes
incolores e insípidos, passavam em uma velocidade inimaginável.
Em um final de tarde qualquer, desvencilhei-me
de alguns compromissos e pus-me em direção ao orfanato: fazia questão de
entregar, pessoalmente, o embrulho ao pequenino.
- Acalme-se, acalme-se, assim você me sufoca,
rapaz! – tentava respirar, imerso no caloroso abraço de Pedro.
- Mas... espere aí! – Pedro
interveio, pensativo, devolvendo-me o fôlego. – Hoje é Dia dos Pais, não é?
- Sim, por quê? – respondi, após
uma pausa. Esta data sempre me fora insignificante.
- Eu é que deveria presenteá-lo!
– pôs as mãos na cintura, em tom de revolta.
- Mas eu nem sou pai, seu
moleque! – puxei-lhe o braço e fiz-lhe longas cócegas.
Após um longo intervalo de risos
e brincadeiras, fez-se um longo silêncio. Pedro olhava-me, ora exaltado, ora
temeroso, quando, em tom de súplica, indagou:
- Você quer ser meu pai?
--------------------------------------------------------------------------------------------------
Pensativo, olhava Helena, imersa
em sono profundo, certo de que a notícia não poderia mais ser adiada ou
ocultada. Antes de temer a reação de minha esposa, temia a mim mesmo: não sabia
se queria ser pai, ou melhor, não sabia se seria um bom pai. Causava-me repulsa
a ideia de que, por interferência da genética, teria semelhante desempenho de
meu genitor, no exercício desta nobre função. Os pensamentos pareciam ressoar
em viva-voz, posto que despertaram Helena. – Preciso falar-lhe. – disse, de
forma incisiva.

Um grito ecoou pelas paredes do
recinto.
--------------------------------------------------------------------------------------------------
Finalizo e digo que, se, naquele Dia dos Pais, eu não
tivesse dado uma chance ao pequenino Pedro e, em especial, não tivesse concedido uma oportunidade a mim mesmo, hoje, eu não
teria este garoto ao meu lado, excelente revisor gramatical e fiel companheiro das letras. Não é,
meu filho?
# Sugestão de link:
- Você sabe a origem do Dia dos Pais? Não?! Fique por dentro deste fato curioso, aqui, pelo Wikipédia.
Pin It now!
0 comentários :
Postar um comentário