Você quer ser meu pai?


Abandono de crianças em orfanatos no Brasil


HELENA fincava fortemente as unhas em minhas costas. Suas lágrimas inundavam meu paletó. Reunia, em minhas vísceras, o impossível, para não sucumbir àquele momento. Era o terceiro filho que perdíamos, somente naquele ano.

 - Eu sou uma oca, Vinícius! Completamente vazia por dentro! – agitava a cabeça, desordenadamente, atrapalhando-se entre lágrimas e palavras.

 - Amor... – suspirei fundo. – Acalme-se. A culpa não é sua. – pus meu indicador em seu queixo e, erguendo seus olhos, enxuguei-lhe as lágrimas e beijei-lhe a testa. – O aborto espontâneo, como a própria nomenclatura sugere, independe completamente de sua vontade. – entoava minha voz, de modo a soar a mais acolhedora possível. – Simplesmente acontece. – conclui, abraçando-a com maior afinco. Olhei para o nada, por sobre seu ombro, e perdi-me em pensamentos, perguntando-me até que ponto suportaria aquilo tudo.

Opondo-me grande resistência, propus-me a adotar uma criança.

 - Você faria isso por mim, ou melhor, por nós, amor? – o reflexo da luz, em suas lágrimas, potencializou-se, em um brilho instantâneo. – M-m-mas você sempre teve receio de adotar um filho... – escureceu o semblante, não disfarçando seu desapontamento.

 - É, amor... – encarava o lustre, em olhar vago. – Mas, por você, eu faço tudo. Absolutamente tudo para te ver feliz. – beijei-lhe os lábios e esbocei um leve sorriso incolor.

Vinícius, apesar de primogênito – posição de honraria, na família brasileira, da década de 70 –, era, nitidamente, desvalorizado, em prol de sua irmã caçula. Sua mãe não se acanhava em dedicar maiores mimos e extravagâncias à pequenina, a tão desejada filha mulher, adotada, Vinícius fazia questão de ressaltar. Seu pai, práxis à época, mantinha-se, como bom patriarca, em um pedestal, equidistante de mulher e filhos. Restava-lhe, apenas, as carícias impessoais de seus brinquedos, portanto.

A caçula, para transtorno de sua mãe e malicioso êxtase de Vinícius, aos 18 anos incompletos, ausentou-se de casa, às escondidas, para nunca mais retornar. As suposições, confirmadas por mexericos de vizinhança, convergiam em uma fuga passional: fugira com uma paixonite, um famoso traficante de drogas. De posse destas informações, espero seja mais compreensivo com nosso pupilo, leitor. Vinícius jamais aceitara o fato de ser substituído por uma bastardazinha qualquer, como ele próprio a denominava. Esclarecidos os fatos, devolvemos a palavra ao nosso protagonista.

Naquela fria e cinzenta tarde de outono, pus-se, apesar da gélida garoa, em direção a um orfanato, não tão distante, em bairro vizinho.

A assistente social falava-me algo sobre problemas estruturais e econômicos, consequentes, principalmente, do descaso governamental e das escassas doações voluntárias: informações estas que apenas cruzavam, em um longe ruído, meus tímpanos. O bater de porta despertou-me do transe.

 - Aqui é o berçário. – mostrou-me, em um simpático sorriso. – Estes daqui têm sorte – apontava para uns bebês roliços e loiros. – Mal nascem e já têm uma família à espera. – Os negros, quase sempre, não desfrutam de tal celeridade – ressaltou, em um baixar de olhos e enfraquecer de voz.

Algumas portas adiante, adentramos o quarto dos meninos – deveria ser homem, ressaltei – de faixa etária entre dois e seis anos. Todos, à exceção de Pedro, dormiam, silenciosamente, disfarçando, em gordos ressonos, a personalidade traquina. Pedro, até então entretido, dirigiu sua atenção àquela silhueta desconhecida e, em ataque de fúria, saltou em minhas pernas, esbofeteando-me freneticamente.

Mil desculpas e algumas inúmeras indagações sobre minha integridade física e bem-estar acompanharam Vinícius até a porta.

 - Não culpe o pobrezinho, sr. Vinícius... – olhava-me com piedade.

Diante do fato desconcertante, a assistente social viu-se sem saída e, após um longo suspiro, revelou:

 - Pedro, em inocentes dois anos de idade, assistiu ao homicídio de sua mãe, a facadas, autoria de seu próprio pai, em uma de suas crises de embriaguez. 

Fez-se um incômodo silêncio. Virei-me e sai , absorto.

Após aquele dia, sem saber ao certo por qual motivo, passei a visitar Pedro reiteradamente. As crises de ódio, aos poucos, cedeream a uma personalidade afável, típica da doçura da idade. Por vezes, adormecia com Pedro, imersos em fantásticas estórias infantis. Incontáveis foram os danos materiais, durante as partidas de futebol, provocados pelos impactos das bolas. Nossas gargalhadas preenchiam as paredes do orfanato, de modo que o silêncio era visitante raro e fugaz. Os dias, antes incolores e insípidos, passavam em uma velocidade inimaginável.

Em um final de tarde qualquer, desvencilhei-me de alguns compromissos e pus-me em direção ao orfanato: fazia questão de entregar, pessoalmente, o embrulho ao pequenino.

 - Acalme-se, acalme-se, assim você me sufoca, rapaz! – tentava respirar, imerso no caloroso abraço de Pedro. 

- Mas... espere aí! – Pedro interveio, pensativo, devolvendo-me o fôlego. – Hoje é Dia dos Pais, não é? 

- Sim, por quê? – respondi, após uma pausa. Esta data sempre me fora insignificante.

- Eu é que deveria presenteá-lo! – pôs as mãos na cintura, em tom de revolta.

- Mas eu nem sou pai, seu moleque! – puxei-lhe o braço e fiz-lhe longas cócegas.

Após um longo intervalo de risos e brincadeiras, fez-se um longo silêncio. Pedro olhava-me, ora exaltado, ora temeroso, quando, em tom de súplica, indagou:

- Você quer ser meu pai?

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Pensativo, olhava Helena, imersa em sono profundo, certo de que a notícia não poderia mais ser adiada ou ocultada. Antes de temer a reação de minha esposa, temia a mim mesmo: não sabia se queria ser pai, ou melhor, não sabia se seria um bom pai. Causava-me repulsa a ideia de que, por interferência da genética, teria semelhante desempenho de meu genitor, no exercício desta nobre função. Os pensamentos pareciam ressoar em viva-voz, posto que despertaram Helena. – Preciso falar-lhe. – disse, de forma incisiva.

Dia dos Pais (Poemas Avulsos)

Um grito ecoou pelas paredes do recinto.

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Finalizo e digo que, se, naquele Dia dos Pais, eu não tivesse dado uma chance ao pequenino Pedro e, em especial, não tivesse concedido uma oportunidade a mim mesmo, hoje, eu não teria este garoto ao meu lado, excelente revisor gramatical e fiel companheiro das letras. Não é, meu filho?


# Sugestão de link:

- Você sabe a origem do Dia dos Pais? Não?! Fique por dentro deste fato curioso, aqui, pelo Wikipédia.
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