Gisele Bündchen veste 46

A GULA #3

DESSA VEZ, foram somente trinta minutos. Uma escova dental, um banheiro e mil pensamentos desordenados, juntos, são um instrumento de alto poder lesivo, quando em mãos corretas.
Júlia sempre fora uma criança afável e de fácil manuseio. Nossa, ela é uma boneca!, exclamava uma. Patrícia ela puxou para você: tem um talento nato para as passarelas. Vede como é graciosa no andar!, suspirava outra. Ainda bem que só herdou os genes da mãe, ria-se o pai, orgulhoso. E, sempre bem regada aos exclamos e suspiros, crescera a pequenina Gisele.
Modelo gorda (Poemas Avulsos)- Filha, não esqueça do ensaio hoje, às 13h!
Como era gratificante para a mãe ver a filha seguindo seus passos. Em vaidade típica da profissão, via-se em cada flash; regozijava-se, rememorando o início de sua carreira.
 - Certo, mãe, gritava Júlia, de outro cômodo.
 Aquela vida de passarelas não a agradava muito. A empolgação de Patrícia era-lhe torturante. Por mais que assim quisesse, não podia sobrepujar os sonhos da mãe, em prol de reles capricho seu.
Farejou a casa inteira e, ao localizar a fonte da voz, Patrícia escureceu o semblante.
 - Já está enfurnada de novo neste banheiro, garota!, sublinhava, com rispidez, a frequência do ato, enquanto dava pancadelas na porta.
 - Ah!, já estou indo mãe!, disse uma voz rouca, descontinuando a frase com uma ou três tosses.
A palidez era nítida em seu rosto. Os ombros, curvados, denunciavam uma fraqueza doentia.
 - Meu Deus, você ainda está assim?!, levou as mãos à cintura. Olha que você vai se atrasar, menina!, e saiu resmungando algo sobre gordura e pontualidade.
A mãe sempre censurava o sobrepeso de Júlia. Ressalto, leitor, que a escala biométrica aqui utilizada é a mesma do mundo esquelético das passarelas. E o que podia fazer se, apesar das reiteradas tentativas, não lograva êxito nas dietas?, reconfortava-se, para logo depois punir-se: mas também, Júlia, com essa tua compulsão por doces! E os pensamentos misturavam-se, em uma já confusa cabeçade adolescente de quatorze anos.
Já pusera os exageros na comida, e os posteriores regurgitamentos, na lista de hábitos, quiçá manias. O tempo dispensado no ritual já não era tão prejudicial aos compromissos. Só a incomodava as, cada vez mais frequentes, sensações de queimação e dores no esôfago. Intercaladamente, sentia tonturas e enjôos. Mas, o que fazer? São os sacrifícios de minha profissão, justificava-se. Apesar das disposições em contrário, Júlia herdara o narciso da mãe.
 - Isso, filha!, mantenha a postura, orientava a mãe, embebida por orgulho de genitora.
Um dos flashes, porém, já não era mais flash. Era escuridão.
Júlia acordou em um leito de hospital. Sentia um forte aperto na mão direita. Olhou para o lado. Era a mãe que ali estava, de olhos vermelhos e semblante aflito.
 - M-m-mãe..., as palavras rasgavam sua garganta.
 - Não fale nada, filha, enxugava, com a outra mão, as lágrimas. Apenas escute, suspirou. O médico disse que, além de você ser bulímica, é portadora de porfiria. E que... e que..., olhava para cima, como que implorando uma ajuda divina. E que você, a partir de agora, terá de seguir uma dieta rica em carboidratos, por ser este o único tratamento para esta doença. F-f-filha, gaguejava, sua carreira de modelo acabou, desabou.
Júlia ouvia atentamente os diagnósticos. Corroeu-se ao ouvir que a mãe desesperava-se com o findar das passarelas, enquanto seu estado clínico apenas roubava-lhe um suspiro.
Virou o rosto, cerrou as pálpebras e uma lágrima escapou-lhe.

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