Apaixone-se - parte II

Relatarei, aqui, caro leitor, histórias baseadas em fatos reais, sobre paixões vividas por pessoas comuns, que não conseguem se entregar menos que integralmente ao ser amado. Paixões que se prolatam pelo tempo com a mesma destruição e imprevisibilidade de uma tempestade de inverno.

Os pequenos contos serão expostos em primeira pessoa, de modo a dar mais realidade ao depoimento e a facilitar o acesso ao seu coração, meu leitor, através de seus olhos.


A cada texto deste sequencial será atribuída uma trilha sonora conexa ao mesmo, sob a curadoria do jornalista Rayldo Pereira, para ser ouvida (e sentida)  por você, durante o processo de leitura. Essa experiência possibilitará uma mistura inigualável de sensações, aguçando seus sentidos mais íntimos!

Deguste este conto ao som de LORDE - YELLOW FLICKER BEAT.



Estávamos ele, eu e ela, nesta ordem, sentados juntos, lado a lado, nas cadeiras do cinema. Ele, meu namorado; ela, minha (futura) namorada. O nome do filme que assistíamos? Pouco importa! Possuo plena convicção de que minha vida é um drama muito mais interessante que metade desses longas, protagonizados por uma patricinha loira, com dilemas impecáveis, em sua existência cor-de-rosa.

Bem, você deve estar se perguntando como viemos parar nesse impasse cinematográfico, não? Leia e verá.

Por toda a vida escolar, sempre fui aquela nerd clássica, que se posicionava bem na cadeira da frente, na fileira central: tímida, gordinha e de óculos. Passava despercebida diante de tudo e de todos. Nem um simples xingamento ou empurrão, frutos de bullying, a mim dedicavam. Não costumava sair de casa e, quando o fazia, meu destino era certo – formatura ou festa de 15 anos.

Tudo mudou (tudo mesmo!) quando ingressei na universidade, como estudante de nível superior. Um novo e amplíssimo horizonte se abriu em minha aurora, a um estender de braços de alcance. As pessoas já não se atinham tanto à minha forma física e, pela primeira vez, valorizavam meu estereótipo de ser humano inteligente. Todos sempre se escoravam em minhas costas nos trabalhos em grupo e disputavam, a tapas e explosivos, minhas anotações de caderno. Esse foi o ápice da popularidade em minha vida acadêmica.

Conheci e namorei um garoto, companheiro de sala, por três longos meses, mesmo sabendo que era lésbica. Nesse interstício, conheci uma garota, por intermédio do (falecido) Orkut, ao me adicionar na referida rede social. Sim, você pode rir. A idade chega para todos, meu querido. Muacks!

Como ela era linda, inteligente, extrovertida e cativante! O doce gargalhar de seu sorriso ainda ecoa pelas paredes de meu ouvido, dando-me uma miscelânea de saudades e tristeza. Conversávamos por horas no telefone, debatendo acerca dos assuntos mais fúteis aos mais picantes e capciosos. Em meio a um desses longos diálogos, marcamos um encontro. Sim, eu sei que estava namorado um homem e que não deveria ter feito isso. Não preciso de outras vozes arrotando acusações em minha cara – a da minha consciência já basta.

Após algumas poucas semanas, passada a fase do romantismo meloso, ela começou a me exigir um posicionamento mais firme em relação ao meu namoro de mentirinha. Como se isso não bastasse, passou a me impor uma atitude mais enérgica, para que eu revelasse logo aos meus familiares e amigos a minha opção sexual. Por óbvio, eu também queria apresentá-la a todos como minha namorada, e me consumia o fato de podermos trocar carinhos e afetos apenas entre quatro paredes, a sós. Brigamos, brigamos e, mais uma vez, brigamos.

Ela simplesmente não conseguia absorver a possibilidade de eu não ser bem resolvida com minha sexualidade. Era meu primeiro relacionamento e os conflitos típicos da homoafetividade ainda me assombravam. Os meus pais eram extremamente católicos e, como tais, adeptos da teoria de que ser gay é sinônimo de ir ao inferno após o julgamento final. Somado a esses fatos, não possuía amigos tão próximos que me transmitissem a confiança de compartilhar os dilemas de minha vida íntima e privada com eles.

Prestes a findar meu falso namoro, fiz um convite despretensioso a meu namorado e minha amiga para assistirmos a um filme. Poria um fim naquilo tudo! Não suportava mais vivenciar um dia daquele dilema, que tanto corroía minhas vísceras.

Ali, sob a fraca luz da sala de cinema, percebi que minha vida não era nada mais que uma comédia, um fracasso de bilheteria, com um enredo sem graça, sem sal, sem nada. Contive-me para, naquele instante, não desabar em gritos e lágrimas. O verbete “lésbica” esperneava dentro de mim, como um filho rebelde de nove meses, ansioso pelo oxigênio dos ares da liberdade que o aguardava.

Terminei o namoro que, para meu alívio, jazia em paz, a sete palmos do chão, há algum tempo. Dirigi-me ao estacionamento, com o intuito de ir embora daquele lugar, daquela situação, daquela vida. Ela me segurou pelo braço: ainda queria mais (muito mais que poderia oferecer naquele momento). Discutimos como nunca, aos berros e palavrões. Alguns poucos paravam para contemplar a desgraça alheia, em assento privilegiado, questionando-se por que suas vidas não eram tão intensas e emocionantes.

Ela me deu um tapa no rosto.

Pus minha mão direita no local da agressão, ainda sem acreditar na extensão de sua ousadia. Um filete de lágrimas escorreu de meu olho, entre os sulcos do rosto, já sem cor nem expressão. Olhei diretamente em seus olhos, apontei meu indicador esquerdo na sua direção e soletrei:

 - N-U-N-C-A mais chegue perto de mim!

Atualmente, meus pais ainda não sabem (da minha boca) que sou lésbica. Alguns poucos amigos, sim. Não tenho notícias recentes de meu antigo namorado. O que houve com minha amiga? Bem, dela eu guardo apenas o som e a dor daquele tapa e uma eterna gratidão por, com ele, ter me despertado para o teatro em que vivia e no qual encenava uma reles coadjuvante.
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