Crescei e multiplicai-vos

 A pedofilia na Igreja Católica


SOB O PÁLIO da cruz, sentia o suor respingar em meu rosto. Cada relâmpago que atravessa as vidraças daquela noite chuvosa e sombria revelava uma mistura de feições de fé, prazer e medo. O segundo adjetivo despiu-se diante de meus olhos aos poucos, veste após veste, com mãos de malícia, o que me pôs no atual estado de estupefação. Os trovões pareciam acompanhar, em sincrônica melodia, as orações em latim, que se espremiam tímidas por entre gemidos fervorosos. As dores e o eventual sangramento já não mais me incomodavam. Só não compreendia ao certo o sentido daquilo tudo.

Antes de iniciar nossa prosa, devo contar-lhe somente um trecho de minha história, de modo a preservar sua paciência e minha intimidade. Tudo o que sei, vale dizer, foi-me repassado por terceiros, claro, devido à exígua idade, que não me permitia melhor memória dos fatos. Fui abandonado por minha mãe na porta de um convento, por volta do mês de agosto, ano 2000. Ela o fez por hipossuficiência financeira: mal podia manter-se com seus sete filhos. Era mulher da vida, diziam alguns. Outros, mais sensatos, creio eu, diziam sê-la apenas uma pobre desafortunada, a vagar por becos e vielas, em busca de esmolas.  Minha honra prefere acreditar na primeira hipótese, devo dizer. De resto, só isso sei. Porém tenho certeza que há muito mais que se possa imaginar neste triste conto. O permanente cochicho dos padres e o olhar enviesado das freiras permitiam-me inferir tal ilação. Sem contar que, como um leproso, não podia me misturar com os demais órfãos. O motivo? Ordens superiores, era o que me diziam, não mais.

Amaro era meu melhor amigo. Ou melhor, mais que isso. De todos os internos, era o único que não me tratava com menoscabo ou repúdia. Pelo contrário, cuidava de mim com um zelo e dedicação dignos de uma amorosa relação paterna. Contava-me estórias todos os dias antes de dormir. Beijava-me o rosto e sempre me dizia para não ter medo que Deus estava comigo. Quando adoecia, tirava quinhões de seu próprio bolso para comprar-me os mais eficientes remédios, por mais custosos que fossem. E quando fui iniciado no ensino litúrgico? Fazia questão de me ajudar nos deveres e de acompanhar meu desempenho nas aulas. Todos os anos comprava um pequeno bolo redondo de chocolate, colocava incontáveis velinhas azuis e chegava de mansinho em meu quarto, próximo do findar do dia, para cantar-me os parabéns. Jamais esquecia. 

Todos reprimiam Amaro pela relação tão íntima com aquele meninote sujo. Ele simplesmente ignorava. Dizia que tinha para comigo um afeto tão inexplicável quanto os mistérios da Bíblia e tão grandioso quanto o amor de Jesus sobre os homens. 

O suor e a aflição banhava-me o corpo quando acordei, naquela noite de verão de setembro de 2008. O que aquele vulto fazia sobre meu corpo? Antes mesmo que pensasse em gritar, uma mão grande e pesada posou sobre minha boca, abafando-me o desespero. Arregalava os olhos, sacudia o corpo e os membros freneticamente, quando um morno sussurro invadiu meu tímpano: acalme-se, Pedro, sou eu, Amaro. O medo transformou-se em pensamentos desordenados, e meu corpo, quase que instantaneamente, relaxou. Não sabia o que pensar. Não sabia o que sentir. E ali permaneci, duro e estático, embalado pelo gozo divino de meu melhor amigo.

Pedofilia na Igreja (Poemas Avulsos)

As visitas, a partir daí, tornaram-se cada vez mais assíduas e corriqueiras, sendo, por vezes, mais de uma por dia.

Em uma ventilada tarde de outono, os galhos das árvores, quase que totalmente desnudos, balançavam aleatoriamente, como que ao som de um bolero desordenado. As folhas, dos mais variados tons de vermelho e verde, cobriam o chão em sua plenitude, formando um confortável e charmoso tapete biodegradável. Eu e Amaro conversávamos descontraidamente sob a já escassa sombra de uma secular sequoia. Por entre piadas e avaliações desdenhosas dos atributos físicos de padres roliços, e após um incômodo silêncio, perguntei-lhe o que há muito me atormentava: 

 - Amaro... – abaixei a cabeça e comecei a judiar de uma formiga que ali passava com um considerável pedaço de folha.

 - Diga, meu filho. – olhou-me com a serenidade de sempre, no fundo de meus olhos, como se lesse meus pensamentos.

O silêncio instaurou-se novamente e com ele um inexplicável medo

 - Diga... – insistiu, com um franzir de testa.

 - N-n-nada não. – gaguejei – E saí em disparada, em direção ao convento. 

O tempo foi passando e a puberdade trouxe-me, gradativamente, a compreensão do sentido daquelas visitas, agora esporádicas, de Amaro aos meus aposentos. Os hormônios, além das naturais mutações físicas, afloraram em minha psique sentimentos até então desconhecidos: sentia que estava apaixonado por Amaro, e não sabia como lidar com isso. Minha reação de defesa foi afastar-me de meu melhor amigo. Passei a evitá-lo nos corredores, nas salas de aula e até nas missas. Notando as fugas intencionais, Amaro visitou-me, com intuito diverso daquele por mim imaginado. Fingi que estava adormecido e ao tocar-me, repeli seu corpo com um forte empurrão, arremessando-o contra meu oratório. Estupefato, Amaro olhou-me arregalado e indagou:

 - O que foi, meu filho? – tentava levantar-se do chão.

 Levantei da cama, em ímpeto de fúria.

 - Filho o quê? Você pensa que eu ainda sou uma criança? Que ainda vou me manter inerte diante de seus abusos? Que vou me deixar estuprar ainda pelos próximos cinco anos? – apontava o dedo em seu rosto. – Hein, me diga! – não percebia que já alterava o tom de voz.

- M-m-mas, meu filho, de onde você tirou isso? – as feições, antes tomadas de dúvida e medo, agora eram preenchidas por fúria.

- Ora! Não se faça de santo! Aliás, você é tudo, menos um santo! Não tem vergonha de usar essa batina?
Atraído pelos murmúrios exaltados, o padre-diretor invadiu, de súbito, o quarto no exato momento em que Amaro pressionava-me contra a parede, tentando beijar-me à força, dizendo-me ser o responsável pela desgraça que se instalara em sua vida.

Fui expulso do convento e Amaro foi exilado em uma espécie de centro de reabilitação, no outro lado do país, lugar em que os padres infratores isolavam-se para cumprir penitências

Com algumas economias, mudei de cidade e, por graça divina, logo encontrei emprego em uma humilde lanchonete, próxima de minha antiga casa.

Anteontem, uma moça bonita, de idade bem inferior ao que as feições sofridas aparentavam, bateu-me à porta.

- Em que posso ajudá-la? Não tenho esmolas, senhora, sinto muito. – disse, impaciente.

- Não quero sua ajuda, senhor. Só gostaria de falar com Pedro Henrique. Há muito que venho procurando-o. O senhor o conhece, por acaso? – a voz, de tão fraca, era quase inaudível.

- Sim, sim. Sou eu. O que deseja? – disse, com um franzir de cenho.

- Quero falar-lhe. Serei breve. Dispõe de algum tempo?

Vendo o sofrimento nos olhos daquela pobre mulher, compadeci-me e resolvi dedicar-lhe um pouco de atenção, por mais fútil que fosse o assunto a tratar.

Ali mesmo na calçada nós nos sentamos, e é esta conversa que me traz aqui, meu caro. Contou-me que seu nome era Angelina e que, em um passado remoto, apaixonou-se por um padre, e logo engravidou. Como se já não fosse motivo – e desonra – suficiente para o findar do relacionamento, contou para o interno que era mulher da vida. Foi quando ele a repudiou e disse para jamais aparecer na igreja novamente, e que nenhum amparo daria àquele fruto impuro e proibido, apesar das súplicas da jovem moçoila. Ao ver-se sem saída, abandonou o recém-nascido na porta do convento de seu pai, por não confiar a posse a mais ninguém de tão precioso bem. Por entre lágrimas e soluços, mostrou-me a foto do padre, que logo reconheci: era Amaro. Mantive-me inerte por um bom tempo, sem qualquer esboço de reação. Estava em estado choque. A mulher sacudia-me desesperadamente, em vão, como que querendo despertar-me de um sono profundo. Quando cai em mim, abracei-a, e chorei, chorei e chorei como nunca em minha vida, em cima do ombro daquela pobre estranha.

Por fim, digo que mudei novamente de cidade, de modo a não ser mais encontrado por aquela mulher. Admito que foi uma espécie de defesa de todo este inferno pelo qual passei.

 - Bem, doutor, é isso. O que o senhor acha? Ainda precisarei tomar todos esses remédios por quanto tempo? É que os efeitos colaterais são terríveis! Mal consigo dormir! - mostrei minhas enormes olheiras como prova das alegações.

- É, meu rapaz... – interveio o psicólogo, disfarçando a voz trêmula. – Jamais ouvi história similar. Pelo visto, ainda temos muito a conversar.


# SUGESTÃO DE LINK

- A pedofilia na Igreja Católica, por Anselmo Borges. Um texto sucinto, porém completo, a respeito da relação íntima entre o elevado número de abusos sexuais e a impunidade dos infratores, aqui

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